Às vezes a gente quer comentar  uma coisa e acaba falando de outra. Já aconteceu com vocês?

Pois eu queria falar sobre o dia dos pais ontem, que foi bem legal. Demos uma camisa do São Paulo pra ele, ele usou ontem mesmo. Foi um dia tranquilo e bom, em que conseguimos curtir bem o véio, a Juju e eu.

Mas no fim eu vou acabar falando sobre outra coisa, não tão feliz quanto o dia dos pais. Questão de poucos minutos que me deixaram bem pensativa.

No sábado, eu fiquei de encontrar a Juju na estação Tietê do metrô e, de lá, a gente pegar o ônibus pra Mairiporã, onde o véio mora.

Então, sábado à tarde, peguei um ônibus pra chegar até o metrô. Andar de ônibus já é aventura; busão pro Jabaquara, então… já chegou lotado. Fiquei lá na frente mesmo, perto da catraca, já que ia descer no ponto final. Depois de pouco tempo, subiu um homem, devia ter seus 50 anos, mas não dá pra saber, era negro, a gente nunca consegue saber a idade real deles, eles demoram a envelhecer.

Esse era daqueles negros bem escuros mesmo. Daqueles que a gente vê pouco agora. Porque a gente se acostuma a chamar de negro a qualquer um que não seja branco, mas negão mesmo, mesmo, a gente não vê tantos assim. E esse era.

Assim que ele subiu, já percebi que as pessoas ficaram meio ressabiadas. Piorou quando ele abriu a boca: bêbado feito um gambá. Como diz a mãe do Dádi: tava “torrado”. Preto, bêbado, já viu. Só não abriu uma clareira no ônibus porque realmente tava lotado demais até pra isso. E eu, prestando atenção, comecei a observar do meu cantinho – estava relativamente longe dele, espremida perto da catraca – enquanto as pessoas começaram a fingir que ele não estava lá. Como todo bom bêbado, ele queria conversar, e começou pelo motorista.

“Negro, você é lindo (detalhe, o motorista era branco, ele é que chamava a todo mundo de negro). Porque você trabalha, e muito. Você tem filhos? Amanhã é dia dos pais, e você tem que estar lindo para seus filhos. Esteja lindo, negro.”

Até aí tudo bem. Fica mais impressionante quando eu lembro da docilidade com que ele se dirigia às pessoas, que aumentava na mesma medida em que elas tentavam se afastar dele. O motorista conversou com ele numa boa, na medida do possível. Ele continuou:

“Eu sou um negro preto. As pessoas têm medo de mim, porque eu sou um negro preto.” E riu. E continuou:

“E no negro preto a madeira canta.”

Avançou um pouco mais pra dentro do ônibus, encontrou uma mulher com a filha (de uns 16 anos mais ou menos):

“É sua filha, minha negra? Se ela tiver pai, diga pra ela dizer pra ele que ela o ama muito. Eu tenho duas filhas, mas elas não querem falar comigo, estão brigadas comigo. Amanhã é dia dos pais, e sua filha tem que estar linda para ver o pai dela, e dizer que ela o ama muito. Eu tenho duas filhas: uma de 25 e uma de 27. Mas estamos brigados e elas não falam comigo.”

“É. No negro preto, a madeira canta, canta.”

A menina ficou dura feito um espeto de bambu. A mãe respondeu com educação aquelas frases curtas, sabe? de quando você só responde o mínimo pra cortar a conversa logo. O homem repetiu-se em alguns comentários, como convém aos bêbados. Desceu pouco depois.

Existem várias formas de se enxergar (ou não) o mundo; eu sou defensora da ideia de que o momento histórico nunca passa. Não vou me estender sobre esse conceito aqui, mas já cheguei a conversar sobre isso com algumas pessoas. É engraçado quando você pensa que a escravidão foi “abolida” em 1888 e que, em 1889, no Hino à República apareça “nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”. Outrora… um ano antes! Vocês conhecem o Hino à República, né? Por favor. Vai lá o Rui Barbosa, rasga um monte de documentos comprobatórios da escravidão (aceita até 1888, repudiada em 1889) e pronto, acabou a escravidão e todos os seus rastros, suas sequelas… coisa incrível, né? Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós.

Mas é assim que quase todo mundo pensa. Na escola a gente aprende que isso foi “há cem anos atrás”, como se esse tempo, na história de um país, fosse uma eternidade, e parece que o passado não tem relação nenhuma com a atualidade. Você cresce convenientemente achando que passou, que agora são “novos tempos”, e o avanço das tecnologias faz parecer que a distância entre passado e presente é ainda maior, camuflando muitas coisas que continuam muito parecidas, se não iguais, aos tempos de “outrora”. Novos tempos, é? De repente, mais de cem anos depois, eu vejo entrar num ônibus um estereótipo do “bom escravo”, e não consigo acreditar no que eu vejo acontecer. Não precisava nem de muita sensibilidade. Aos que me achem radical, dá pra citar milhares de outros exemplos desses resquícios históricos que muitos, hipocritamente, dizem não existir mais. Pedindo, eu volto pra escrever sobre isso.

Depois que ele desceu, percebi suspiros de alívio, algumas reclamações, muitas piadas, risos gerais. E eu fiquei mesmo com vontade de chorar.